quarta-feira, 13 de abril de 2011

Crônica da loucura



Voltou a malhar. Vai sempre que pode. Faz um esforço para ir pelo menos três vezes por semana. Sempre foi dada a rituais. Sentar na mesma cadeira, arrumar as coisas da mesma forma, andar na mesma esteira... Gostava de ficar em frente ao janelão que dá vista para o Parque da Cidade, lindo pedaço de mata atlântica que resiste espremido entre os prédios e a favela que o querem engolir. Fica olhando o céu, as nuvens, aproveitando a brisa que bate vez em quando, todos os matizes de verde que as árvores oferecem ao entardecer. Bem na sua frente, na altura dos seus olhos, firmemente fincada no chão fica uma bela e frondosa mangueira. Ao longo do ano acompanha a floração, os frutos aparecerem e crescerem, até que surgem os predadores jogando paus, pedras e futucando com vara a pobre árvore, que outra alternativa não tem a não ser ir derribando as mangas que vão ser consumidas, se maduras, ou deixadas ali mesmo no chão se não estão no ponto. Pois bem, olhando para aquela árvore, a música nos ouvidos, o pensamento vagando, notou que havia um vazio na folhagem, mais ou menos no meio da copa, como um nicho na escura massa de folhas. Pensou em como seria fácil alguém instalar-se ali e ficar quase invisível aos olhos dos inocentes passantes. Viu um vulto escuro, que se movia ao sabor do vento e do sol que entrava pelas frestas, um atirador de elite mirando em sua direção, com uma arma daquelas dos filmes de espionagem, chegou a sentir a luz do laser vermelho em sua testa, entre os olhos e como em Matrix viu o fulgor do disparo, a bala vindo em sua direção, certeira, sem chance, mortal. Não esboçou nenhuma reação. Sabia tratar-se apenas de sua imaginação, não corria nenhum perigo, não tinha inimigos, ninguém que pudesse desejar sua morte. Racional, ficou pensando que a loucura deve ser assim, só que nesse caso a pessoa acredita, confunde realidade e imaginação, sente-se ameaçada, perseguida, tem que revidar à altura. Entra numa escola e mata. Os médicos justificam sua ação com base nas reações químicas que confundem seu cérebro e alteram sua percepção da realidade... Nasceu assim? Tornou-se assim? Vítima ou assassino frio? Para as famílias que perderam seus filhos nada disso importa, a dor, assim como a loucura, tolda a visão, confunde a razão. A dor da ausência, ao contrário das balas, mata lentamente, numa espécie de tortura e sofrimento que parecem não ter fim.


8 comentários:

Terráqueo disse...

Lúcia, a dor da ausência somada a violência e a imprevisibilidade formam um coquetel mais letal do que as balas, para os que ficam. Bjs.

Anônimo disse...

ERRADO!, Politicamente correto é horrível, deixe as pessoas menos privilegiadas desfrutar de uma ou duas mangas que talvez seja a única alimentação que a pessoa consiga em um dia. Agressão sim, a das pessoas que de barriga cheia, ficam atrás de uma Cortina ideológica achando quem está com fome, está depredando a natureza Quem nunca foi menino, pra jogar um pau, sim um pau, ou uma pedra em um pé de árvore pra pegar uma fruta?. Como essa fruta é sempre mais gostosa que a conseguimos comprar, tem gosto de fruta roubada (me lembro da minha infância),

Lucia Alfaya disse...

Terráqueo, a dor da ausência provocada e não natural, acrescenta uma gota de amargura à dor de quem perdeu o ser amado. Fico emocionada toda vez que vejo o sofrimento e desespero dos que são tocados pela violência que, infelizmente, é uma marca do nosso tempo.

Lucia Alfaya disse...

Anônimo

CORRETO!

Concordo com você, acho inclusive que todas as alamedas, praças e espaços púbicos desse país deveriam se arborizadas com fruteiras que, além de lindas, são generosas e dão seus frutos sem perguntar se quem os está colhendo é rico ou pobre, está com fome ou apenas com vontade de saborear uma delícia da natureza.
Observe que eu não usei a palavra depredador. Usei predador, no sentido natural do animal que se alimenta de outro, apenas uma licença poética (já que a manga não é um animal) para descrever o que acontece no Parque.
Quanto ao resto, discordo de algumas coisas que você coloca, mas este espaço é pequeno para essa discussão.
Obrigada pela visita e volte sempre.

TARDE disse...

Pedaço de Mim
Chico Buarque
Composição : Chico Buarque

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

Lucia Alfaya disse...

Linda música. Linda lembrança. Retrato perfeito da dor da perda.

Terráqueo disse...

Um dia eu vi minha mãe a chorar enquanto olhava a rua pela janela. Estavam a cortar a pereira que havia na calçada, pois suas raízes rompiam o calçamento. Eu perguntei por quê ela chorarava, e ela me respondeu que via sempre os meninos de rua fazerem a festa com as pequenas peras. Inquiri a razão do corte de todas as árvores da cidade, e me explicaram que outras seriam replantadas. Passados quase 15 anos, as ruas estão áridas, frias, e os meninos não tem nem mais nenhuma pera verde para apanhar. Bjs.

Lucia Alfaya disse...

Pois é, a Terra é tão generosa, porque não aproveitar essa generosidade e espalhar aos quatro ventos árvores que, além de embelezar, dão frutos para amenizar a fome de alimento de alguns e a fome de beleza de outros? Aqui, em Salvador, na Avenida Paralela, alguma alma nobre e mais esclarecida plantou pés de jambo no canteiro central, próximo ao Centro Administrativo. Quando passo por ali fico admirando o chão pintado das flores do jambeiro, lindo, lindo!