quarta-feira, 26 de março de 2014

O TRUQUE DOS READY-MADES E O ARTISTA COMO MESSIAS¹

Se você não compreende a verdade revelada pela alquimia do artista-messias na não-arte, é porque sabe nada, inocente!





Em outro texto já tratei da estranheza que me causa grande parte da arte contemporânea. E tratei de forma mais genérica. Bem, aos poucos pretendo seguir com o debate especificando um pouco mais. Apesar de ter citado os ready-mades, foi de passagem. Sigamos nisso, pois vale a pena. Afinal, os ready-mades são essa maravilha da alquimia, onde o ordinário se transmuta em singularidade pelo simples desejo do artista-messias. Vamos lá.
Em 1917, Duchamp tava meio aborrecido com o Salão de Nova York e resolveu fazer uma pegadinha do Mallandro. Em vez de mandar uma obra de arte, decidiu enviar um mictório batizado de Fonte. Segundo uma testemunha, George Bellows, presidente do júri, ficou indignado. Achava aquilo uma piada de mau gosto. Então surge o marchand de Duchamp, Walter Arensberg, e diz, como um apóstolo: - Foi revelada uma forma encantadora libertada de sua finalidade funcional; inquestionavelmente uma contribuição de ordem estética. Ao que Belows retruca: - Não podemos mostrar isso. Essa coisa não passa daquilo que é. E Arensberg: - Este é exatamente o significado. Uma oportunidade para que o artista envie qualquer coisa que tenha escolhido. Ninguém pode decidir o que é arte, isso compete somente a ele.
Pronto! Nesse momento desce à Terra e encarna entre nós o artista-messias, aquele que transforma nada em alguma coisa, e nos revela a Verdade. Tudo isso, apenas, utilizando conceitos. O artista-messias não modifica a matéria, ele modifica a "alma" das coisas. A palavra "messias" vem do verbo hebraico que significa ungir, aplicar o óleo santo. O artista-messias é esse que faz a unção das coisas, e as liberta do seu sentido comum.
Esse conceito apresentado por Duchamp foi denominado ready-made, objetos comuns que ganhariam status de obra de arte quando deslocados do seu uso habitual e expostos em outro contexto. Dessa forma, o objeto se validaria pela vontade do artista, e não por si mesmo. Isso gera um nó conceitual, pois chancela uma obra justamente por ela ser o que não é. Afinal, só partindo da premissa de que algo não é arte que se pode aplicar a mágica de ser arte quando proclamada. E a quem é permitido fazer e decidir isso? Como disse Arensberg, ao artista. E somente a ele.
O ready-made acima se chama Diálogo Inútil². Está exposta em uma galeria num dos maiores shoppings de Salvador. Não sei quem é o autor. Apesar da galeria levar o nome de um famoso artista baiano, há obras de outras pessoas. Mas isso não importa. O debate não é sobre ele, é sobre o todo da coisa. Bem, quase 100 anos depois, a pegadinha de Duchamp segue firme. Na vitrine ampla, bem localizada, com uma iluminação bonita, galeria elegante, eis que se destaca a peça: dois rolos de papel higiênico dentro de uma caixa de vidro. Segundo li (pois a vergonha não me permitiu entrar e perguntar) a peça custa R$ 2 mil. Ou seja, admite-se a possibilidade de alguém pagar para ter aquilo. O que antes era uma piada pra questionar valores de um Salão, hoje virou uma obra de galeria.
Fiquei com a questão: se eu tiver o incontrolável desejo de ter em casa, para meu deleite estetico-artístico, dois rolos de papel higiênico num aquário, por que não poderia eu mesmo produzir, gastando bem menos? Ora, simples: porque se eu produzir não será obra do artista-messias. Afinal, o valor não está no objeto, mas na unção dada. Como escreveu a crítica Anne Cauquelin "o artista é apenas aquele que mostra. Basta-lhe apontar, assinalar". Ou seja, o artista-messias aponta, e o profano se faz sagrado. E só ele pode fazer isso. Mas, se esses iluminados são os portadores da Verdade revelada, porque nós mortais temos dificuldade em aceitá-los? Robert Right, no ótimo livro A Evolução de Deus, nos responde. Escreve ele:
"Marcos parece responsável por um dos artifícios de defesa mais impressionantes dos evangelhos: a explicação de por que Jesus, enviado por Deus para convencer as pessoas de que o Reino de Deus estava próximo, convenceu tão poucas pessoas. Disse:
Quando se acharam a sós, os que o cercavam e os doze indagaram dele o sentido das parábolas. Ele disse-lhes: "A vós é revelado o mistério do Reino de Deus, aos de fora, porém, tudo se lhes propõe em parábolas; deste modo, eles olham sem ver, escutam sem compreender, sem que se convertam e lhes seja perdoado".
Ou seja, o artista-messias só é compreendido plenamente por aqueles que tem fé, se converteram à sua palavra, e o seguem. Aos demais, a estranheza é fruto de ainda não fazerem parte do círculo sagrado. Por isso tudo lhes parece sem sentido.
Então, paradoxalmente, apesar de tudo poder ser arte, nem todos são artistas e nem tudo é compreensível. De certa forma, o título da obra do papel higiênico tem razão: é um diálogo inútil. Ou se aceita a Verdade, ou você não a compreenderá.
E se você, caro leitor, ainda não assimilou a verdade revelada pelo artista-messias e, como Belows, acha que a "coisa não passa daquilo que é", é porque sabe nada, inocente!, como diria o filósofo Cumpadi Washington.
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¹ Publicado em artes e ideias por Carlos Batalha // 26 mar 2014.
² A obra é da autoria do Artista Plástico Leonel Mattos, exibida em seu atelier no Salvador Shopping.

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