quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Arte e beleza








Texto de Arnaldo Jabor, publicado no Jornal O GLOBO - 11 de novembro de 2003


"Em outubro, fui a Veneza. Estava precisando mesmo de um pouco de arte, depois de dois anos sem sair, impregnado de todos os bodes do Brasil e do mundo, pois minha profissão atual é ser esponja das notícias e dos fatos que elas escondem. Oito dias em Veneza foram um banho de purificação; na água das banheiras européias boiavam escândalos da Justiça, bandidos do PCC, flutuavam balas perdidas, frases pomposas de ministros, mentiras de fisiológicos, ladrões de casaca, afundavam detritos que acumulo na dura função de comentarista. Até Sharon e Bush sumiam no redemoinho do ralo.

Mergulhei na espantosa beleza da cidade e nas obras da Renascença que atulham aquela antiga República do comércio entre o Oriente e o Ocidente e bateu-me a verdade óbvia: a grande obra de arte só floresce onde há dinheiro. Sim, puros românticos, nos palácios dos Doges, nas igrejas bizantina-cristãs, nos tetos, portais, afrescos, em tudo jorram as encomendas da vaidade dos poderosos ou dos sacerdotes de Deus, que empresavam as oficinas de artesãos, comandadas por gênios como Tintoretto, Veronese, Ticiano. Fiquei dias dentro da Scuola Grande di San Rocco, na Academia, tudo.

Depois eu fui ver a casa de Peggy Guggenheim, onde estão tesouros da arte moderna dos primeiros 40 anos do século XX. E, em seguida, fui ver a arte contemporânea na Bienal de Veneza. Assim, em oito dias eu vi a Renascença, Modernismo e "pós-modernismo", se esse nome cabe. Foi um show de contrastes que me deu uma certeza: há qualquer coisa de podre na arte contemporânea. Rosnem de ódio, netinhos de Duchamp, gritem "militantes imaginários", uivem instaladores de nada, mas há uma terrível ausência, uma "hiância", como dizia Mallarmé, um grande vazio em museus e bienais. Há uma ausência que danifica a obra de arte: a esperança. Isso mesmo: esperança. Mesmo nas obras de encomenda de duques e cardeais do século XVI, feitas por empregados que podiam ir até em cana se não satisfizessem os poderosos, havia um fervor religioso ou meramente fabril, havia um desejo de retratar uma mudança, uma fé na beleza, nos ventos novos que humanizavam a figura, que criavam a "perspectiva", uma idéia de tempo, de progresso, longe da platitude medieval. A genialidade de artistas como Tintoretto não buscava mais a representação estática de uma imobilidade submissa, mas a captação de um momento de agonia ou de triunfo, de "esperança".

Fui também à Fundação da Peggy Guggenheim, em sua casa à beira do Canal. Lá estão Picasso, Matisse, Kandinsky, Magritte, Pollock, tantos... E é também deslumbrante ver o entusiasmo da nova arte que se desenhava no início do século XX, a arte como a militância por uma beleza construtiva, o olho humano sendo enriquecido, na "esperança" de que a modernidade se aperfeiçoasse, unida às grandes utopias do século XX, como o socialismo e até mesmo o "fascismozinho" do futurismo italiano. Os artistas modernos queriam repensar o mundo nas suas formas, mesmo quando um conceito fosse deprimido, havia na forma e na atitude um desejo visível de mudança para melhor.

Depois, fui ver a Bienal de Veneza. A sensação dominante é a de um vasto depósito de lixo ou de ruínas ou de despejos da civilização. Os pavilhões de todos os países repetem os mesmos códigos e repertórios: terra arrasada, materiais brutos e sujos, desarmonia, assimetria, uma busca deliberada da feiúra, uma recusa de qualquer poiesis , uma clara vergonha de ser "arte", vergonha de provocar sentimentos de prazer. A fruição poética é impedida, por ser "burguesa", como se o prazer fosse uma coisa reacionária, "alienada", ignorando o "mal do mundo", que tem de ser esfregado na cara do espectador para que ele não esqueça o horror social e político que nos assola. O problema é que esse desejo de denúncia não deixa um espaço para algo que possa viver, renascer. É como se a própria arte fosse uma babaquice a ser evitada, na linha direta da herança mal-entendida e descontextualizada de Duchamp, o estraga-prazeres dos anos 20.

Só que o mundo mudou muito. Depois do 11 de setembro, principalmente, ficou nítido que o mundo é hoje muito pior que qualquer representação deprimida. A destruição que vemos na vida, o império da sordidez mercantil, a ignorância no poder, o fanatismo do terror, a boçalidade da indústria cultural, o beco-sem-saída do racismo e do fundamentalismo, a destruição ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda, está muito além de qualquer "denúncia" artística; o mal é tão profundo que denunciá-lo mecanicamente destruindo a própria arte como uma "prova do crime" está virando uma ociosa cumplicidade.

A Bienal de Veneza (furada, aqui e ali, por alguns talentos individuais, claro) virou um parque temático de deprimidos, um hospital de paranóicos, um muro de lamentações inúteis. Não adianta mais "chocar" ninguém, pois nada é mais chocante que as chuvas de bombas, a miséria global e a estupidez universal do inferno de hoje. O absurdismo do pós-guerra, nos anos 50, a arte pop, todo o desespero crítico ou paródico tinham um claro alvo construtivo em sua militância. Havia esperança na angústia. Hoje, sobrou apenas a psicose como bandeira, a melancolia como "denúncia" de uma vida sem solução. Nada que haja na Bienal nos choca mais que uma explosão da discoteca onde morrem 300 jovens, nada é pior ou mais crítico do mundo que homens-bomba ou a África ou a lama das favelas e periferias. Nada. E, aí, vemos a verdade: a arte contemporânea está muito aquém da realidade. Que performance ou happening será mais contundente ou expressivo que a destruição de Nova York, do WTC? Que cadáver exposto dentro de garrafas ou latinhas de merda ou cavalos mortos ou latas de lixo ou ruínas são mais assustadoras que a eternidade da guerra Israel-Árabes ou do inferno do Iraque? Sobrou uma denúncia tola (que aliás absolve gentalha sem talento), muito aquém da complexidade do horror de hoje.

Nunca esqueço da frase de Stravinsky "A obra de arte deve ser exaltante ". Não se trata de uma cegueira complacente com o erro, mas uma ação exaltante da vida, da existência humana, exaltante de algo que está se perdendo. Muitos artistas se acham "militantes", mas estão abrindo mão da reflexão na arte para o eixo do mal capitalista. Críticos e curadores seguem de cabeça baixa, sem coragem de denunciar oportunismos, por medo de serem chamados de caretas ou reacionários. Será que o "novo" não pode ser um "belo" que denuncie, com sua luz, sua esperança, a injusta vida?

Digo isso, porque, se o negócio for eventos de destruição e crítica do capitalismo, ninguém é melhor artista que os homens-bomba e o Osama Bin Laden."



Eu, assino em baixo!


4 comentários:

Anônimo disse...

E o tolo aqui pensando que essa tal de arte fosse coisa relaxante.
Bj

Terráqueo disse...

Lúcia,

Gostei muito do texto. Não consigo gostar da estética da feiura. Falando agora da estética da beleza. Teu quadro é belisssimo. Bl.

Lucia Alfaya disse...

Chorik
A arte pode ser relaxante, nem sempre é bela, mas com certeza sempre traduz emoção. Eu sou como Picasso, quando acabo de pintar, pinto de novo para relaxar...
Bjs
Lúcia

Lucia Alfaya disse...

Terráqueo
A feiura pela feiura, a apelação, a agressão gratuita também não ganham minha atenção, nem admiração. A arte para mim tem que comover, transformar, transmitir espanto, beleza, tem que despertar algo no homem que o faça acreditar que valeu a pena ter vivido para desfrutar daquele momento de pura contemplação.
Bj
Lúcia