terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Relâmpagos

A arte deve falar por si. Não me convence a obra de arte que precisa de “bula” para ser entendida, ela deve tocar o espectador pela força da expressão. Deve surpreender o olhar, causar emoção e prescinde de tradução. O espectador deve encontrar o significado para o que seus olhos vêem e seu coração intui. O cérebro só deve entrar em cena depois que a mágica do primeiro encontro ocorre, aí então serão decifrados outros significados, surgirão detalhes antes despercebidos, instaurar-se-á a paixão e ele estará preso para sempre ao mistério da criação que inspirou o artista.

Para ilustrar esse pensamento, trago um texto de Ferreira Gullar, do livro Relâmpagos [dizer o ver], onde ele comenta trabalhos de vários artistas de forma poética e original. Em suas palavras: “Toda obra de arte atinge nosso olhar como uma inesperada fulguração, um relâmpago. Atrevi-me algumas vezes a tentar fixar esse relâmpago em palavras.”



 

MATISSE: FALAR PINTURA

Você quer fazer pintura? Comece então por cortar sua língua, para, a partir de agora, só falar com pincéis.

Esta frase de Henri Matisse resume o que ele essencialmente pensava a respeito de sua arte: linguagem única e insubstituível pela qual o artista formula o que por nenhum outro meio pode ser expresso. Uma lição que alguns artistas e críticos de hoje necessitam aprender, já que ainda não descobriram – ou esqueceram –, é a que o homem só inventou a pintura porque existe uma parte da experiência humana que não se traduz em palavras. Quando Matisse diz que o pintor deve cortar a própria língua, ele acentua o caráter não conceitual, não verbal, não literário da pintura. E isso está evidente em cada um de seus quadros, como neste Les Capucines à “La danse” (II), onde só a pintura fala: nas suas cores e na matéria delas, na pincelada áspera e sem concessões, severa, que deixa à mostra a materialidade da cor, e que esboça sumariamente os corpos humanos e os objetos, mudados na sua forma, transfigurados numa espécie de transcendência ao revés: a coisa não se torna espírito mas mancha de si mesma, quase-coisa, produto do ato de pintar. Essa é a nova realidade que os mestres do começo do século criam com as cores e os pincéis. Uma alegria outra que a experiência da arte desconhecia.

Ferreira Gullar

9 comentários:

AC disse...

Embora a minha concepção de arte seja mais na base da intuição, revejo-me em muito do que aqui é dito. A arte deve mesmo falar por si.
Excelente postagem!

Beijo :)

Anônimo disse...

Dê o desconto que sou um zero à esquerda em artes, ok?
Penso que toda comunicação sofre ruídos, de forma que a mensagem recebida nem sempre é a emitida. Muitos desses ruídos são de natureza humana, ou melhor, fazem parte do filtro individual de quem percebe. A percepção do que fala a arte é, assim, uma percepção diferente, e graças a Deus é assim.
No Ibirapuera, em São Paulo, há quase quarenta anos, encontramos um amigo de meu pai que vendia uma tela numa das feiras de artes daquele tempo, embaixo da marquise. Eu, criança, olhava para o quadro e suas cores, suas texturas, mas não compreendia aquela modernidade tão irreal para quem tinha cinco, seis anos. Meu pai perguntou ao amigo, o que ele quis dizer com aquele quadro. O artista confessou. "Ainda não sei bem." rs

Terráqueo disse...

Gostei muito desse texto, e definitivamente não gosto muito das pinturas que tem frases ou uma mensagem óbvia. Por outro lado, a pintura que não retratar qualquer referência a uma mensagem ou conteúdo, que não tiver qualquer representação figurativa, que se traduzir apenas em tinta e relevo, também não me agrada, pois não curto arte abstrata.. Gosto de algo que misture o figurativo com abstração, algo assim bem no estilo das pinturas da Lúcia Alfaya.

Moniz Fiappo disse...

Livro maravilhoso que ganhei de presente desta artista sensível e competente. È bom compartilhar um pouco da genialidade do autor.

Lucia Alfaya disse...

AC
A intuição é uma grande aliada nesse caso. Ajuda a garimpar a emoção por trás da obra, ajuda a ver o que os olhos às vezes não captam no primeiro olhar. A intuição é útil na vida e na arte.
Bj
Lúcia

Lucia Alfaya disse...

Chorik

Se a pintura é a "linguagem única e insubstituível pela qual o artista formula o que por nenhum outro meio pode ser expresso", as palavras tornam-se supérfluas e o artista pode não saber bem o que quer dizer, mas se há emoção e verdade na sua produção, com certeza ela falará por si. Essa é uma teoria, como qualquer outra, e você tem razão: a comunicação é rica em ruído, em qualquer âmbito. Na arte então, o artista pode ter tido uma intenção muito clara para ele, mas a leitura que cada espectador vai fazer é absolutamente particular e pode ser diametralmente oposta. Nisso também reside a beleza da arte. A leitura é difícil, múltipla de significados, e é por isso que definir o que é arte ainda é, nos dias de hoje, um tema polêmico. Eu, estou ainda muito longe de compreende-la e por isso costumo usar a intuição e, na medida do possível, o repertório acumulado pela prática da pintura, pela leitura e pelas exposições que visito.
Bjs
Lúcia

Lucia Alfaya disse...

Terráqueo

Eu também não sou muito fã da arte abstrata, com algumas raras exceções. Acho ótimo que o que faço lhe agrada, pois é isso mesmo, gosto de misturar no mesmo trabalho o figurativo, o geométrico e o abstrato. É como se eu estivesse construindo um cenário fantástico, onde circulam personagens ambíguos, sombras, objetos deslocados do seu habitat. Gosto de olhar para a tela e imaginar um contexto, uma estória, um mistério...
Bjs
Lúcia

Bípede Falante disse...

Concordo inteiramente. Bilhete de artista explicando o que fez não dá. Bilhete bom é bilhete de amor :)
beijos

Lucia Alfaya disse...

Bípede

Bilhete de amor é bom e ainda por cima inspira a artista.

Beijos ;)