sábado, 11 de dezembro de 2010

Saudade


Por que tinha de partir tão cedo? Tantas perguntas ficaram sem resposta, perdidas para sempre. Fragmentos de histórias ouvidas há muito tempo, curiosidades... qual a origem daquele pequeno defeito no braço esquerdo, quase imperceptível mas que lhe limitava o movimento? As amigas disseram-lhe: você não vai conseguir trabalhar na fábrica de louças, a tarefa exige habilidade e rapidez. E, no entanto, foi uma das melhores funcionárias que aquela fábrica alemã já teve. E sua irmã menor, salva de uma morte horrível, queimada. Deveria fazer frio e a casa sem calefação obrigava a família a passar a maior parte do tempo na cozinha, onde ardia o fogão a lenha. As crianças sozinhas em casa. Uma fagulha talvez, a proximidade do calor, as roupas começam a pegar fogo, rapidamente as labaredas tomam conta do pequeno corpo agachado, a irmã mais velha olha e num impulso pega uma panela que está sobre a pia, com água, e joga sobre a criança. As marcas ficaram para lembrar o episódio, mas a vida foi salva, e ainda vive. O trabalho na estrada de ferro. A saída prematura de casa, em busca de uma vida melhor. A travessia do oceano, de navio, muitos dias de viagem, o baú com roupas e louças, a incerteza... Não deve ter sido uma vida fácil, certamente não foi nada fácil. Qual a hora exata do nascimento? Sem saber disso não pode fazer seu mapa astral. Os arquivos do hospital se perderam... e agora? Quais foram as traquinagens de infância que mais marcaram? Qual era a roupa predileta? E a fruta ou chocolate deixado em baixo do travesseiro, como um agrado para a criança que iria acordar e não teria a mãe por perto para lhe dar um abraço? Ela precisava trabalhar, mas se fazia presente nesses pequenos gestos, tão especiais. Ela era muito especial. Tão forte e tão frágil. Tão só. Tanta falta.

10 comentários:

Terráqueo disse...

Lúcia, esse teu quadro á algo sensacional.

Quanto ao texto, super tocante, consegui sentir muita coisa. Toca o coração profundamente. Beijos.

Lucia Alfaya disse...

Terráqueo

são lembranças distantes que de vez em quando voltam para assombrar e lembrar que a vida é um carrossel, que as pessoas têm tanta coisa para contar, mesmo sendo a vida tão breve...
Quanto à imagem, ainda não é um quadro, é uma colagem que talvez ganhe vida na tela algum dia, quem sabe?
Bjs

Anônimo disse...

De quem falas? Certamente de alguém próximo, tanto quanto possível foi tal proximidade. Não importa ao leitor, só a ti, porque ao leitor basta a emoção sentida, a ti nada bastará.
Bj

Unknown disse...

Que esta saudade seja eternamente sombra de lembranças distantes, pois assim, so precisas tirar-lhe o foco de luz que a alimenta, e serás eternamente senhora da situação.

Bípede Falante disse...

Lucia, não sei se é pura ficção, se é pura pessoa, não sei, mas estou tão comovida com o texto e com o quadro ...
beijo.

Lucia Alfaya disse...

Chorik

acho que é a pessoa mais próxima que alguém pode ter na vida. Falo de minha mãe, uma mulher extraordinária, acima de tudo corajosa, que construiu a mulher que sou, mesmo tendo partido cedo demais. Suas palavras me emocionaram e as lágrimas correm novamente, sua sensibilidade me tocou profundamente. Obrigada.
Quero lhe dar um grande abraço virtual, apertado e emocionado.

Lucia Alfaya disse...

Jura

que lindas palavras, que linda imagem, que linda poesia. Obrigada. São lembranças que aparecem de vez em quando, sem avisar, mas que já não provocam dor, ao contrário, me dão forças para continuar e valorizar a vida.
Bjs

Lucia Alfaya disse...

Bípede

é pura pessoa.É pura realidade. É pura emoção.

Bjs :.)

Moniz Fiappo disse...

Nunca ví casamento tão perfeito: texto e tela. Não deixe de transpor definitivamente. Me pareceu o retrato falado da saudade, aquela que dói, dentro, fundo, e que não morre jamais.

Edu O. disse...

e essa janela aberta para o frio